Alfabetização com poemas
Há um mito entre nós, professores, que diz: "textos pequenos e simplificados são próprios para alfabetizar". Porém, para uma alfabetização de qualidade, precisamos nos libertar disso. Muitos desses textos não fazem sentido e trazem vocabulário "pobre", sem desafios. Não é o caso, por exemplo, das parlendas, que são ótimas para a alfabetização. Além de fazer parte das brincadeiras orais das crianças, esse tipo de texto de memória possui elementos que facilitam a reflexão sobre a escrita, entre outros pontos positivos.
É necessário ir além: ampliar o repertório textual na alfabetização e oferecer diferentes gêneros, mais elaborados, com mais complexidade, nas atividades de leitura e escrita. Quando oferecemos bons modelos de textos para nossos alunos, ampliamos as suas possibilidades de aprendizagem.
Como eu já disse em outros posts, ninguém escreve do nada. As leituras de referência são muito importantes, porque é com base nelas que o aluno constrói as referências para a escrita. A isso damos o nome de "modelização". Modelizar significa repertoriar o aluno por meio da apresentação de textos que sirvam como modelo para as produções escritas.
Temos excelentes textos modelos em nosso país! Precisamos pesquisar um pouco, em livros e na internet, mas logo descobrimos uma infinidade de textos de escritores reconhecidos, que podem render boas práticas de escrita de textos autorais com os pequenos.
Vejam uma prática de escrita na alfabetização que venho desenvolvendo com meus alunos a partir de poemas de grandes escritores brasileiros:
Em uma roda de leitura, apresentei aos alunos vários textos de um determinado escritor, que pode ser Cecília Meireles, Vinícius de Moraes, Manuel Bandeira, Otávio Roth, entre outros. Preparei um ambiente especial, com fotos e outros materiais, como vídeos, textos musicados para apresentar a vida e a obra do escritor.
Apresentada a obra, os alunos escolheram seus poemas preferidos para declamar e ilustrar. Conversamos então sobre as características em comum entre os textos e os temas explorados pelos escritores. Chamo a atenção para os recursos de linguagem que eles utilizam, como repetições e rimas.
Na hora de escrever os textos, dividi os alunos em grupos, que podem variar de duplas a quartetos, dependendo da hipótese de escrita e do nível de autonomia que apresentam.
Previamente, escolhi um dos poemas do escritor da vez e ofereci impresso em papel a cada grupo, para que eles usassem como referência e apoio. Quando a fase da modelização é bem desenvolvida, os alunos se sentem seguros e preparados para escrever suas próprias produções.
Propus, então, que os alunos escrevessem seus próprios poemas para apresentar para os colegas e expor no mural da sala. Fui orientando os alunos e fazendo as devidas intervenções pedagógicas para que escrevem alfabeticamente.
Quando os alunos estão descobrindo suas potencialidades e os textos começam a surgir, fica mais complexo atender a todos. Por isso, essa prática durou vários dias. Mas é maravilhoso e emocionante ver tantas produções de qualidade. Veja, abaixo, alguns poemas que já serviram de inspiração, e ao lado deles, as produções dos alunos:
Leilão de Jardim
Cecília Meireles
Quem me compra um jardim com flores?
borboletas de muitas cores,
lavadeiras e passarinhos,
ovos verdes e azuis nos ninhos?
Quem me compra este caracol?
Quem me compra um raio
de sol?
Um lagarto entre o muro e a hera,
uma estátua da Primavera?
Quem me compra este formigueiro?
E este sapo, que é jardineiro?
E a cigarra e a sua
canção?
E o grilinho dentro
do chão?
(Este é meu leilão!)
Leilão na Praça
Alunos do 1º ano
E. E. Clementino Vieira Cordeiro
Piedade/SP. 2008
Quem me compra muitas flores,
Uma praça com muitas cores?
Quem me compra aqueles namorados,
Que tem filhos endoidados?
Quem me compra um pouco de chuva,
um casamento de viúva?
Quem me compra um macaquinho
e um passarinho?
Quem me compra uma praça,
Com muita grama no jardim,
cheio de alecrim?
Quem me compra uma praça
cheia de graça?
Esse é o nosso leilão!
A porta
Vinícius de Moraes
Eu sou feita de madeira
Madeira, matéria morta
Mas não há coisa no mundo
Mais viva do que uma porta.
Eu abro devagarinho
Pra passar o menininho
Eu abro bem com cuidado
Pra passar o namorado
Eu abro bem prazenteira
Pra passar a cozinheira
Eu abro de supetão
Pra passar o capitão.
Só não abro pra essa gente
Que diz (a mim bem me importa...)
Que se uma pessoa é burra
É burra como uma porta.
Eu sou muito inteligente!
Eu fecho a frente da casa
Fecho a frente do quartel
Fecho tudo nesse mundo
Só vivo aberta no céu!
A nossa porta
Alunos do 1º ano
E. E. Professora Laila Galep Sacker
Sorocaba/SP. 2014
Eu sou feita de vidro
De vidro, material transparente
Mas só passa pela porta
Quem for meu parente
Eu abro bem rapidinho
Pra passar meu irmãozinho
Eu abro que nem champanhe
Pra passar minha mamãe
Eu abro com muito carinho
Pra passar o papaizinho.
Duas dúzias de coisinhas à toa que deixam a gente feliz
Otávio Roth
Passarinho na janela,
pijama de flanela,
brigadeiro na panela.
Gato andando no telhado,
cheirinho de mato molhado,
disco antigo sem chiado.
Pão quentinho de manhã,
drops de hortelã,
grito do Tarzan.
Tirar a sorte no osso,
jogar pedrinha no poço,
um cachecol no pescoço.
Papagaio que conversa,
pisar em tapete persa,
eu te amo e vice-versa.
Vaga-lume aceso na mão,
dias quentes de verão,
descer pelo corrimão.
Almoço de domingo,
revoada de flamingo,
herói que fuma cachimbo.
Anãozinho de jardim,
lacinho de cetim,
terminar o livro assim.
Uma dezena de felicidades
Alunos do 1º ano
E. E. Clementino Vieira Cordeiro
Piedade/SP. 2008
Carrinho que carrega nenenzinho,
Jogar bola no campinho,
Brincar com o irmãozinho,
Salada verde com tomatinho,
Passarinho no murinho,
Ver o peixe no laguinho,
Um sapato bem novinho,
Assistir desenho no friozinho,
Ir em Piedade comer salgadinho,
Ir na biblioteca para ler livrinhos!
Trem de ferro
Manuel Bandeira
Café com pão
Café com pão
Café com pão
Virge Maria que foi isso maquinista?
Agora sim
Café com pão
Agora sim
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força
Oô…
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
De ingazeira
Debruçada
No riacho
Que vontade
de cantar!
Oô…
Quando me prendero
No canaviá
Cada pé de cana
Era um oficiá
Oô… Menina bonita
Do vestido verde
Me dá tua boca
Pra matá minha sede
Oô…
Vou mimbora vou mimbora
Não gosto daqui
Nasci no sertão
Sou de Ouricuri
Oô…
Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente…
Quanta roupa
Alunos do 1º ano
E. E. Clementino Vieira Cordeiro
Piedade/SP. 2008
Quanta roupa, quanta roupa,
quanta roupa, quanta roupa
quanta roupa no varal.
Foguista ponha lenha
Pro caldeirão esquentar
Para o trem andar
Com o vapor
O trem vai falar
Quanta roupa no varal
Que legal!
Passa o morro, passa o sol
É o dia do Natal
Mas que legal,
Mas que legal
Mas que legal.
Os textos são incríveis! Foram escritos alfabeticamente e revisados pelo grupo de autores, antes de serem apresentado aos demais alunos. Dá para perceber que, mesmo sendo escritores iniciantes, eles já se apropriaram das características e dos recursos linguísticos presentes nos textos modelos. Bons modelos de escrita favorecem textos de qualidade.
E vocês, queridos professores? Quais bons modelos textuais estão utilizando em sala de aula? Como estão desenvolvendo a escrita de seus alunos? Contem aqui nos comentários!
Um grande abraço a todos e até a próxima segunda-feira,
Mara Mansani
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